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Fonte: Jornal Valor Econômico de 20/12/2012
Autora: Roberto Pereira d'Araujo - Engenheiro eletricista,
Ex-membro do conselho de administração de Furnas,
diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico
do Setor Elétrico (ILUMINA).
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Já se passaram mais de três meses de agitação em torno das medidas conhecidas como o "11 de setembro do setor elétrico brasileiro". Além da inédita interferência no setor, o que chega a ser patológico é a falta de explicações sobre as razões que levaram o Brasil ter preços de energia totalmente incompatíveis com sua matriz renovável.

Os índices de elevação das tarifas são assustadores. Será que o consumidor tem consciência sobre a intensidade de reajustes que estamos tratando? Dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mostram que, em 1995, quando se iniciou a reforma mercantil do setor, a tarifa média residencial era de R$ 76,26/MWh e a industrial de R$ 43,59/MWh. Em 2011 elas atingiram respectivamente R$ 314,42/MWh e R$ 247,92/MWh. Descontada a inflação acumulada, medida pelo IPCA no período (173,47%), a tarifa residencial subiu 70% real e a industrial 135%!

Esses percentuais deveriam soar os alarmes, mostrando que algo muito sério estaria corroendo nossas vantagens, pois não se encontram situações como essa em nenhum outro país. Nem seria preciso esperar tanto! Em 2004, ano da meia reforma feita no governo Lula, a tarifa industrial já tinha se elevado 76% acima da inflação, e nenhuma medida foi tomada para arrefecer o apetite tarifário do modelo.

Dados a seguir em R$/MWh. Em 2003 a Coelce, do Ceará, descontratou energia da Chesf que custava 54,70 e contratou em seu lugar energia da Termo Fortaleza a 153,98. A Light se desfez de uma energia de Furnas que custava 76,03 e contratou de sua própria termoelétrica (Norte Fluminense) por 133,19. A CPFL preferiu contratar energia de sua própria geração por 113,54 e "largar" a energia da Cesp que custava 63,05. A AES Eletropaulo preferiu energia da AES Tietê a 109,94 do que comprar da CESP a 78,30.

Claro que existiam contratos, mas seria justo impor ao consumidor preços que ultrapassam o dobro dos antes praticados? O racionamento não seria um evento que justificaria, no mínimo, uma negociação para que os contratos fossem "bons para ambas as partes"?

E as correções tarifárias realizadas? Alguns exemplos: em 2003, Cemig, 31,53%; Coelce, 31,29%; Coelba, 31,49%; CPFL, 19,25%; Bandeirante, 18,08%; Enersul, 32,59%; Energipe, 31,18%. Em 2004: Escelsa, 19,89%, Copel, 14,43%. Em 2005: Celpe, 24,43%; Manaus Energia, 19,07%. Na maioria dos casos, o que motivou essas correções foi a manutenção do valor das empresas privatizadas. Afinal, a demanda por energia nesse período se reduziu em 15%. Por incrível que pareça, o consumidor brasileiro foi penalizado por consumir menos.

Mas a energia ficava cara para todos? Claro que não! Ao mesmo tempo em que ocorriam os aumentos recordes, a energia das geradoras federais ficava sem comprador. Como ela é originada de fonte hidráulica e a lógica exige a geração antes de qualquer outra, para onde foram esses MWhs e qual foi o preço pago? A resposta é surpreendente. Cada MWh foi "liquidado" por médias de Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) que variaram de R$ 12,90 em 2003, R$ 18,50 em 2004, R$ 30,18 em 2005 e R$ 60,78 em 2006.

"É preciso ficar atento às consequências da MP 579
que reduzem as receitas das empresas em 80%
imediatamente"

Nesse período, a tarifa industrial já tinha subido 117% real. Nem a indústria reclamava e nem o governo imaginava um tipo de intervenção tão grave quanto a da MP 579. Estariam todos distraídos? Claro que não! Essa energia quase gratuita foi absorvida no mercado livre e, perante tanta "generosidade", as principais indústrias saíram do mercado cativo e foram se aproveitar do que se poderia chamar de um "Bolsa MW". Não é de se espantar que de 2003 a 2007 o número de consumidores livres tenha passado de 49 para 602. A estatística da tarifa industrial cara é do mercado cativo, mas a maioria da indústria não está nesse mercado.

E a transmissão? No ano 2000, tínhamos 69.034 Km de linhas na rede básica. Em 2011 temos aproximadamente 109 mil Km, uma bela expansão. Só que, antes, cada Km de linha nos custava R$ 23.000. Em 2011 custa R$ 90.000, um aumento de 290%! Difícil de entender, já que, a cada leilão, declarações entusiasmadas de membros do governo festejavam deságios recordes da ordem de 50%. Ora, descontos dessa ordem podem ser explicados por preços iniciais muito altos, o que coloca em dúvida a capacidade das autoridades em estimar custos verdadeiros. É bom não esquecer a separação da transmissão e geração feitas há 15 anos, com transferência de rentabilidade das linhas antigas para as usinas, pois elas seriam privatizadas.

O que dizer do encargo de energia de reserva para uma energia que se diz "assegurada"? Ou a reserva é desnecessária ou a segurança não é confiável. Infelizmente, dada a frequência de outro custo, o despacho de térmicas fora da ordem de mérito, a segunda hipótese parece mais plausível. Em 2013 teremos uma conta salgada associada a esse problema. Consequências de uma dissidência metodológica entre Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e Operador Nacional do Sistema (ONS), advinda da fragmentação de responsabilidades.

Ainda faltariam as correções pelo IGP-M, carga tributária, leilões que resultaram em contratações até de térmicas diesel, custos fixos tratados como se fossem proporcionais ao mercado, proliferação de encargos pós-reforma mercantil e leilões de energia nova com preços bem acima dos alardeados pelo governo para dizer que a energia das usinas antigas é cara, mas o artigo ficaria longo e aborrecido.

Tudo o que foi listado é resultado de defeitos estruturais do modelo adotado e alguma herança do racionamento. É urgente um debate aberto e profundo sobre esse tema.

Os sucessivos apagões deveriam nos fazer entender que o setor está doente. A MP 579 é um inaceitável remédio sem diagnóstico e poderá matá-lo. Independentemente do que se fez com as estatais em termos de loteamento de cargos e políticas "tiro no pé", é preciso ficar atento às consequências de medidas que reduzem, da noite para o dia, as receitas das empresas em 80%. Achar que isso não tem efeito no mundo real é acreditar em "curandeiros".